Tuesday, July 27, 2004

Ternura e reflexão

Capa do Hino da TormentaHino da Tormenta (2003, 94 páginas, R$ 18,00) e Tempo de Vôo Para Lugar Algum (2004, 104 páginas, R$ 20,00), de Charles Bukowski, ambos da iniciante editora catarinense Spectro e em tradução do trio Sigval Schaitel, Gerciana Espíndola e Fabio Soares, desvelam um tanto do que Hank (seu apelido) fez em poesia. Do autor de Cartas na Rua, Mulheres e Misto Quente, romancista de mão cheia, os versos só estavam disponíveis em português em trechos da biografia Charles Bukowski - Vida e Loucuras de um Velho Safado (Conrad), de Howard Sounes, e em Os 25 Melhores Poemas de Charles Bukowski (Bertrand), seleção cujo pretensioso título descumpria o prometido. Enquanto não chegam ao português antologias definitivas e panorâmicas, os dois volumes - na verdade, desdobramento de um único, o póstumo Open All Night: New Poems (2000), que os editores decidiram dividir - suprem a lacuna com folga. Hino da Tormenta (Hymn from the Hurrycane, primeira parte do volume norte-americano) e Tempo de Vôo Para Lugar Algum (Flight Time to Nowhere, segunda parte) são puro Bukowski e poesia de qualidade incomum. E de se perguntar, aliás, o porquê de o autor ter permanecido praticamente inédito no gênero por aqui.

Hino da Tormenta apresenta retratos admiráveis da vida cotidiana, carregados de ternura e não raro doloridos de tanta delicadeza. Bukowski tem ímpeto de cronista, fixa uma situação com parcos recursos e deixa de lado metáforas lapidadas ou palavras singulares. Como lírico melancólico que é, olha para o passado despido de adornos, com uma visada reflexiva que a distância provavelmente exacerbou. Em Um lugar para ficar, por exemplo, é difícil não se comover: “ser jovem, idiota, pobre e feio/ não contribui para fazer a vida parecer melhor./ tantos fins de tarde, examinando as paredes sozinho/ sem/ nada pra fumar/ nada pra comer/ (nós geralmente bebíamos rápido o meu salário)/ ela sempre parecia ansiosa pra ir embora/ ansiosa pra se mudar/ mas primeiro ela ame fez passar/pela sua escola/ (me dando Mestrado e Doutorado/ no assunto)/ e ela sempre voltava no final,/ ela queria um lugar para ficar,/ ela dizia,/ algum lugar pra deixar suas roupas./ dizia que eu era engraçado,/ que eu fazia ela rir/ mas eu não estava tentando ser/ engraçado./ ela tinha pernas bonitas e era/ inteligente mas não se importava/ com nada,/ e toda minha fúria e meu humor e/ toda minha loucura apenas a entretinham/ brandamente: eu estava atuando pra ela/ como uma marionete triste em alguma farsa de mim mesmo./ algumas poucas vezes depois que ela saía eu tinha/ vinho vagabundo e cigarros na mãos suficientes/ para uns poucos dias,/ eu ouvia o rádio e olhando para as/ paredes e ficava bêbado o suficiente para/ quase esquecê-la/ mas então ela vol tava mais uma/ vez.” Para além da beleza do quadro doméstico, há um cuidado especial com o andamento cadenciado da construção. O que tem aparência de gratuidade descompromissada nem sempre é assim, e o escritor está muito consciente do efeito que pretende causar.


A linguagem universal da empatia

Capa do Hino da TormentaTempo de Vôo Para Lugar Algum é ainda melhor. Fora de cena o personagem beberrão e rabugento dos romances, folclórico e humano em sua patetice, entra no palco o artífice de sagas individuais quase elegíacas. A comicidade, a falta de heroísmo e o instante significativo que a memória preservou estão lá, intocados e recriados para a posteridade. Se Bukowski incomodava, quando afrontava um american way of life incompreensível com sua vagabundagem ostensiva e seu desapego aos bens materiais, nos dois conjuntos de poemas em questão ele se impõe por força de um poderio mais incisivo. Sem medo de se expor em intimidade, o criador do alter ego Henry Chinaski revela pendor para uma sinceridade que, nas narrativas, tinha muito de impostura juvenil. E em certos poemas de amor que ele soa imbatível, como em Sim, estou: “(...) gosto de ler o jornal de domingo na cama com ela./ gosto de fitas laranja amarradas no pescoço do gato./ gosto de dormir de encontro a um corpo que conheço bem./ gosto dos chinelos pretos jogados ao pé da cama às/ duas da tarde./ gosto de ver como saíram as fotos.// gosto de ser socorrido nos feriados:/ dia da independência, dia do trabalho, dia das bruxas, ação de graças,/ natal, ano novo./ as mulheres sabem como navegar na tormenta/ e elas têm menos medo do amor que eu.// minhas mulheres me fazem rir quando comediantes profissionais/ falham.// tem aquele bem-estar de sair juntos para/ comprar o jornal.// me agrada muito estar sozinho/ mas há também um estranho e afetuoso encanto em não estar sozinho.// gosto de dividir batatas cozidas tarde da noite/ gosto de olhos e dedos mais hábeis que os meu que podem/ desatar do nós do cordão dos meus sapatos.” Em seus poemas-crônicas, Bukowski se redime da eventual sordidez (que há) e fala a linguagem universal da empatia.

Escrito por: Eduardo Lanius
Originalmente publicado em:
Panorama – Jornal do Comércio - Página 1 - Capa
Terça-feira, 27 de julho de 2004 – No 36 – Ano 72

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